1 de julho de 2009

A bela acordada

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita, as pessoas diziam-lhe:

- Eu amo-te.

E iam com ela para a cama e para a mesa.

Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:

- Não gosto de ti.

E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.

A mulher pediu a Deus:

- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.

Então Deus fê-la feia.

A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar
com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais
gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando
era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais
não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço,
estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a
mastigar.

Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que
pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe,
descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a
mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o
peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe
foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe
morreu.

As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era
tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram
chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei
apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? – perguntaram em coro as criadas ao
rei.

- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito
tortas, uma mais curta do que a outra – respondeu o rei às
criadas.

E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à
mulher quando as criadas se foram embora:

- Eu amo-te.

Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com
uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e
comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:

- Eu amo-te.

Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no
tapete de Arraiolos da casa de jantar.




Adília Lopes


Conclusão? Não sei. Cada um é como é e quaisquer que sejam as voltas que a vida dê, as coisas hão-de acabar no tapete de Arraiolos da casa de jantar.


Adenda (o texto do Ricardo Araújo Pereira sobre a Adília Lopes e a nossa mania de querer interpretar o que não tem interpretação):

Certo dia, quando trabalhava no JL, fui incumbido de entrevistar uma escritora chamada Adília Lopes. A primeira pergunta que lhe fiz foi sobre um poema seu de que eu gostava e gosto muitíssimo. Chama-se Autobiografia sumária e só tem três versos: "Os meus gatos / gostam de brincar / com as minhas baratas." O meu objectivo era impressionar a autora com a minha excelente interpretação do poema. Disse-lhe que aqueles versos eram também o resumo da minha vida. Os meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico ("Não é por acaso", disse eu, "que Fialho de Almeida reuniu os seus textos críticos num volume chamado Os Gatos"), aquilo que em mim é perspicaz - e até cruel - gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil. E aquela operação poética - que é, igualmente, uma operação humorística - de escarnecer de si próprio era-me tão familiar que podia descrever-me de forma tão competente como à autora do poema.

Os olhos de Adília Lopes humedeceram-se. Fosse qual fosse a noite solitária em que escreveu o poema, estava longe de imaginar que, tanto tempo depois, a sua alma gémea se apresentasse à sua frente, compreendendo-a tão profundamente. Foi então que Adília Lopes falou. Disse o seguinte: "Pois. Bom, comigo, o que se passa é que eu tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas." E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.

Foi naquele dia, amigo leitor, que eu deixei de me armar em esperto. Tinha citado Fialho de Almeida, tinha usado a expressão "operação poética", e tinha-me visto a mim onde só havia gatos e baratas. Os olhos de Adília Lopes estavam húmidos, provavelmente, do esforço que a sua proprietária fazia para não rir. Não eram só os sacanas dos gatos que escarneciam de mim: a Adília Lopes também. E, desde esse dia, tenho constatado que o mundo inteiro, em geral, me mofa (quem aprecia a frase bem torneada fará bem em registar, num caderninho próprio, a elegante construção "me mofa").

Vários filósofos têm reflectido sobre o lixo, sobretudo acerca do modo como a nossa sociedade trata o seu lixo. Eu estou magoado com o modo como a nossa sociedade trata o meu lixo em especial. Não me interessa o tratamento que a sociedade dá ao seu lixo: a forma como trata o meu é humilhante. O lixo de Adília Lopes gera vida e poemas. O meu lixo não só não gera nada como tem uma falta de personalidade que o amesquinha quase tanto quanto me amesquinha a mim. É muito frequente encontrar-me na circunstância de ter lixo na mão e, quando confrontado com os rótulos que hoje designam as várias secções dos caixotes do lixo (cartão, papel, embalagens, vidro), verificar que o lixo que eu possuo se enquadra, invariavelmente, na categoria dos indiferenciados. Quase todo o meu lixo se caracteriza por uma falta de carácter que só posso ser eu a transmitir--lhe. Eis, afinal, a minha autobiografia sumária: "O meu lixo / é tão desinteressante / como eu."

in Visão (26/03/09)

20 comentários:

Luisa disse...

É um bom sítio, acredita.......conheço a Adília Lopes, é meia doida mas diz coisas acertadas e, faz-me rir sobretudo.
Beijinhos

Ianita disse...

Luísa: tive um professor que era amigo dela, o Osvaldo Silvestre... ele que era um professor bom (ou seria bom professor... quando penso nele deixo de conseguir pensar em condições). Nas aulas dele líamos muito Adília Lopes.

Acho que há uma história qualquer... de alguém que lhe fala do poema das aranhas que brincam com as baratas... e lhe falaram no sentido metafísico da coisa, e nos sentidos contidos naquilo, na humanidade... e ela disse que nunca tinha visto as coisas por esse prisma, que tinha escrito aquilo porque tinha baratas a brincar com aranhas (ou o contrário, já não me lembro). A Verónica entretanto já me vem corrigir :)

Só para dizer que é uma senhora fora do comum. Gosto de a ler porque me desconcerta.

O tapete de Arraiolos? Pois... eu tenho sinusite... talvez não seja o melhor lugar para mim...

Beijinhos

Vera Angélico disse...

Agora que falas das baratas, recordo-me que já ouvi essa história. Acho que pela boca do Ricardo Araújo Pereira. E que a perspectiva era não haver analogia nenhuma, mas sim baratas (lol)!!!!

Tudo está bem, quando acaba... em cima de um tapete de Arraiolos! ;)

Ianita disse...

Vera: penso que sim, que foi o RAP. Ou ele ou o Osvaldo, mas penso que foi mesmo ele.

É, não é? Se as coisas tiverem de acabar em cima de um tapete de Arraiolos, não é mau de todo... a sinusite ultrapassa-se... :)

Unknown disse...

A beleza é um conceito relativo pois depende dos olhos que observam :) A mulher acabou por ser considerada exótica e diferente nessa corte onde foi resgatada da barriga do peixe. E ser diferente e exótico e aí descobrir a beleza é uma coisa linda e a prova de que não há bonito ou feio, há tão simplesmente formas diversas de olhar a mesma realidade!

Ianita disse...

Mei: é o conto de fadas dos tempos modernos...

Concordo contigo. :)

Kisses

Mag disse...

Tem de ser de Arraiolos? ;)

(sim, sim, eu percebi a analogia do texto, o duplo sentido da história, mas que queres, hoje estou bem disposta, deu-me para isto...)

Ianita disse...

Mag: a mim também não me apetece entrar muito por aí... já filosofei demais com a queda e depois levei com café em cima de pés acabadinhos de sair do banho.

Com a Adília sei que tudo é o que é... nem sempre as coisas são o que queremos que sejam.

Eu preferiria que o tapete não fosse de Arraiolos, por causa da sinusite, mas, se tiver de ser... nem tudo é perfeito, né?

:)

Luisa disse...

Oh! miúda, coloca um lençol em cima do tapete e tens o caso resolvido.
Ela tem mesmo baratas dentro de casa e, fala delas como fala dos gatos que lá tem. :)

Ianita disse...

Luísa: era isso... os gatos que brincavam com as baratas! :)

E que grande ideia me deste tu!! Venha o tapete de Arraiolos!!! :)

Rice Man disse...

"Cada um é como é.". E "For every lid the is a pot." (não sei quem disse isto).


A segunda história faz-me lembrar um documentário que revi há pouco tempo... é o cérebro querer ver padrões onde eles não existem, de tentar fazer sentido de coisas que não têm sentido. Porque se uma coisa não faz sentido não pode ser real.

Ianita disse...

Mr. Rice: aqui é a tentar que uma coisa perfeitamente real e comum seja mais do que realmente é.

"Os meus gatos / gostam de brincar / com as minhas baratas."

NI disse...

Ou a eterna mania do ser humano de complicar o que é fácil...

Beijos

Nota - Quanto à sinusite, sei o que estás a passar porque lidei com ela durante 23 anos. Fiz um tratamento simples que fez maravilhas.

Ianita disse...

Ni: precisamente! :)

Beijos
(que tratamento é esse porque eu querooooo!!! Só tenho sinusite há meia dúzia de anos, mas já estou farta!!)

Li disse...

Este Ricardo Araújo Pereira é mesmo doido...e pelos vistos a Adília Lopes também...ahahaha

bjs

Ianita disse...

Lilipat: a Adília Lopes é completamente marada!!! Mas é tão bom!!! :)

Rony disse...

Adoro este texto do RAP, mas também... eu adoro tudo nele, lol

Quanto à AL, o que conheço dela, gosto. Também... foi muito bem apadrinhada pelo Osvaldo...

Ianita disse...

Verónica: o Osvaldo.... huuuummmmm..... :)

A Adília é uma pessoa singular. O RAP também :)

Quetzal disse...

E se a pessoa não tiver um tapete de arraiolos? se tiver só uma passadeira comprada nos chineses também se pode casar ou nem por isso :D ou tem de pedir emprestado o tapete ao alladino? :P

Ianita disse...

Red: eu também não tenho nenhum tapete de arraiolos, talvez por isso nunca me tenha "casado" em cima de um...

Vai daí também não gosto de azeitonas... espero que a Adília neste texto tenha sido menos literal que no poema dos gatos com as baratas! :)