Parece que estive casada uma vida inteira. Parece que já nasci casada. Porque até quando ainda não era casada, preparava-me tanto para o casamento que era como se já fosse casada.
Nunca pensei muito se queria ou não casar. É a ordem natural das coisas. A minha família tinha dinheiro e estatuto e era mais que natural que eu estivesse destinada a algo mais que a minha singela vida. Nasci a ser mais que uma criança. Nasci a ser possibilidade de algo mais. Nasci a ser destinada a algo mais. E, como se passa com todas as mulheres nascidas em famílias de nome, esse “algo mais” passava obrigatoriamente pelo casamento. Um bom casamento. Um casamento dentro da classe. Um casamento acima da classe então era um sonho.
Não bastava ter dinheiro e estatuto. Tantas têm dinheiro e estatuto e não conseguem bons casamentos. Temos que nos comportar de acordo com o estatuto, com a classe a que pertencemos. Temos de saber dominar, parecendo subservientes. Temos de saber fazer tudo, para podermos mandar fazer tudo. Temos de ser duras com os funcionários e dóceis com os maridos. Temos de ter boa aparência. Porque embora os maridos procurem sempre amantes, não lhes podemos causar repulsa, ou não teremos filhos. Por isso, mesmo depois do casamento, temos de continuar a tratar da aparência. Pelo menos enquanto não tivermos filhos.
Sempre fui bonita. A minha família educou-me bem e eu sempre soube que conseguiria um bom marido. Ter conseguido um marido de sangue azul foi uma alegria para a família. Um salto em frente.
O casamento sempre correu bem. Éramos bons companheiros. Podíamos contar um com o outro e a casa estava sempre em ordem. Ele tinha amantes, mas ainda assim nunca deixou de me procurar durante a noite e tivemos alguns filhos.
A vida era serena. Boa. Feliz. De acordo com tudo o que eu sempre quisera e esperara. Não poderia ter sido melhor se o sonhasse. A minha vida era perfeita. O marido perfeito. A casa perfeita. Os filhos perfeitos. A família perfeita.
Até que chegou a guerra.
A guerra é normal. Comum. É normal que as pessoas defendam os seus direitos pelas armas. É normal que reclamem o que é seu e lhes foi roubado. Porque se hoje fecham os olhos a uma maçã roubada do pomar, amanhã não têm pomar.
A honra é a coisa mais importante que poderemos ter e devemos lutar para a conservar. Sempre. Custe o que custar. Doa a quem doer. E por isso não me espantou que o meu marido juntasse o seu exército pessoal para apoiar o irmão. A honra do irmão era a sua honra. E um homem sem honra é um homem morto.
Custou-me que ele estivesse disposto a sacrificar a nossa filha. Sangue do seu sangue. Carne da sua carne. Alma da sua alma. A mais pura. Pela guerra. Mas a honra de um homem é a sua vida. E a luta pela honra vale qualquer sacrifício. Sei disso.
Passaram 10 anos. 10 anos a pouco saber. 10 anos em que muitos dos nossos pereceram naquela guerra. 10 anos em que eu esperei o regresso do meu marido. O meu marido. Aquele que era meu marido desde que nasci. Aquele que era meu marido mesmo antes de ser meu marido. Antes de eu nascer. Antes de os meus pais nascerem. Antes dos pais dos meus pais nascerem. O meu marido desde que o Mundo é Mundo. Antes de eu ser eu e de ele ser ele.
Sempre fui uma esposa dedicada, afectuosa, cumpridora dos seus deveres… perfeita. Sempre fiz tudo o que tinha de fazer. Sempre pus o meu marido acima de tudo e de todos. Acima de mim. Acima dos meus filhos. Acima de tudo.
E depois de tudo o que passámos juntos… depois de ele quase matar a nossa filha… depois de dez anos de ausência numa guerra… depois de tudo… eu esperei por ele… de braços abertos… de alma aberta… pronta a retomar o casamento exactamente onde tinha ficado.
Perdoei tudo. Tudo. Todo o mau humor. Todas as ofensas. Todas as infidelidades. Todas as ausências. Todos os absurdos. Todas as ideias loucas. Tudo. Mas, depois de tudo, trocar-me? Colocar uma rameira estrangeira na minha cama? Como se aquela estrangeira soubesse alguma coisa de como se comportar em sociedade… de como mandar nos escravos… de como organizar um banquete… seria ela a receber as esposas dos amigos do meu marido para o chá? Mas como se ela mal fala a nossa língua?
Que ele a tivesse como escrava e amante na guerra… que a quisesse possuir como se possui um objecto… que lutasse por esse objecto… que entrasse em confronto com Aquiles pela posse dela, como se de um escudo ou de uma espada se tratasse… é normal. Aceitável. Comum. Trazê-la para casa como despojo de guerra… com os outros despojos tirados dos corpos mortos dos adversários… com o resultado da pilhagem às casas dos derrotados… que a trouxesse na condição de coisa, de objecto, de escrava… mas assim? Como mulher… como se fosse igual a mim. Pior. Como se fosse igual a ele. A louca. Cassandra. Cassandra. Cassandra. Cassandra.
Vai uma Cassandra dormir na minha cama? Vai uma Cassandra roubar-me o marido? Ele é meu. Sempre foi meu. Desde que o Mundo é Mundo. Desde o Caos inicial. Desde antes a existência dos deuses. Sem o meu marido, quem sou eu? Uma mulher nasce para ser filha, esposa, mãe e viúva. Nada mais que isto. Se não posso ser esposa… pois que seja viúva.
Nunca pensei muito se queria ou não casar. É a ordem natural das coisas. A minha família tinha dinheiro e estatuto e era mais que natural que eu estivesse destinada a algo mais que a minha singela vida. Nasci a ser mais que uma criança. Nasci a ser possibilidade de algo mais. Nasci a ser destinada a algo mais. E, como se passa com todas as mulheres nascidas em famílias de nome, esse “algo mais” passava obrigatoriamente pelo casamento. Um bom casamento. Um casamento dentro da classe. Um casamento acima da classe então era um sonho.
Não bastava ter dinheiro e estatuto. Tantas têm dinheiro e estatuto e não conseguem bons casamentos. Temos que nos comportar de acordo com o estatuto, com a classe a que pertencemos. Temos de saber dominar, parecendo subservientes. Temos de saber fazer tudo, para podermos mandar fazer tudo. Temos de ser duras com os funcionários e dóceis com os maridos. Temos de ter boa aparência. Porque embora os maridos procurem sempre amantes, não lhes podemos causar repulsa, ou não teremos filhos. Por isso, mesmo depois do casamento, temos de continuar a tratar da aparência. Pelo menos enquanto não tivermos filhos.
Sempre fui bonita. A minha família educou-me bem e eu sempre soube que conseguiria um bom marido. Ter conseguido um marido de sangue azul foi uma alegria para a família. Um salto em frente.
O casamento sempre correu bem. Éramos bons companheiros. Podíamos contar um com o outro e a casa estava sempre em ordem. Ele tinha amantes, mas ainda assim nunca deixou de me procurar durante a noite e tivemos alguns filhos.
A vida era serena. Boa. Feliz. De acordo com tudo o que eu sempre quisera e esperara. Não poderia ter sido melhor se o sonhasse. A minha vida era perfeita. O marido perfeito. A casa perfeita. Os filhos perfeitos. A família perfeita.
Até que chegou a guerra.
A guerra é normal. Comum. É normal que as pessoas defendam os seus direitos pelas armas. É normal que reclamem o que é seu e lhes foi roubado. Porque se hoje fecham os olhos a uma maçã roubada do pomar, amanhã não têm pomar.
A honra é a coisa mais importante que poderemos ter e devemos lutar para a conservar. Sempre. Custe o que custar. Doa a quem doer. E por isso não me espantou que o meu marido juntasse o seu exército pessoal para apoiar o irmão. A honra do irmão era a sua honra. E um homem sem honra é um homem morto.
Custou-me que ele estivesse disposto a sacrificar a nossa filha. Sangue do seu sangue. Carne da sua carne. Alma da sua alma. A mais pura. Pela guerra. Mas a honra de um homem é a sua vida. E a luta pela honra vale qualquer sacrifício. Sei disso.
Passaram 10 anos. 10 anos a pouco saber. 10 anos em que muitos dos nossos pereceram naquela guerra. 10 anos em que eu esperei o regresso do meu marido. O meu marido. Aquele que era meu marido desde que nasci. Aquele que era meu marido mesmo antes de ser meu marido. Antes de eu nascer. Antes de os meus pais nascerem. Antes dos pais dos meus pais nascerem. O meu marido desde que o Mundo é Mundo. Antes de eu ser eu e de ele ser ele.
Sempre fui uma esposa dedicada, afectuosa, cumpridora dos seus deveres… perfeita. Sempre fiz tudo o que tinha de fazer. Sempre pus o meu marido acima de tudo e de todos. Acima de mim. Acima dos meus filhos. Acima de tudo.
E depois de tudo o que passámos juntos… depois de ele quase matar a nossa filha… depois de dez anos de ausência numa guerra… depois de tudo… eu esperei por ele… de braços abertos… de alma aberta… pronta a retomar o casamento exactamente onde tinha ficado.
Perdoei tudo. Tudo. Todo o mau humor. Todas as ofensas. Todas as infidelidades. Todas as ausências. Todos os absurdos. Todas as ideias loucas. Tudo. Mas, depois de tudo, trocar-me? Colocar uma rameira estrangeira na minha cama? Como se aquela estrangeira soubesse alguma coisa de como se comportar em sociedade… de como mandar nos escravos… de como organizar um banquete… seria ela a receber as esposas dos amigos do meu marido para o chá? Mas como se ela mal fala a nossa língua?
Que ele a tivesse como escrava e amante na guerra… que a quisesse possuir como se possui um objecto… que lutasse por esse objecto… que entrasse em confronto com Aquiles pela posse dela, como se de um escudo ou de uma espada se tratasse… é normal. Aceitável. Comum. Trazê-la para casa como despojo de guerra… com os outros despojos tirados dos corpos mortos dos adversários… com o resultado da pilhagem às casas dos derrotados… que a trouxesse na condição de coisa, de objecto, de escrava… mas assim? Como mulher… como se fosse igual a mim. Pior. Como se fosse igual a ele. A louca. Cassandra. Cassandra. Cassandra. Cassandra.
Vai uma Cassandra dormir na minha cama? Vai uma Cassandra roubar-me o marido? Ele é meu. Sempre foi meu. Desde que o Mundo é Mundo. Desde o Caos inicial. Desde antes a existência dos deuses. Sem o meu marido, quem sou eu? Uma mulher nasce para ser filha, esposa, mãe e viúva. Nada mais que isto. Se não posso ser esposa… pois que seja viúva.
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