Tem 5 anos. Dá o primeiro passo rumo ao desconhecido, fora do Mundo real, o único que conhece, o Mundo doméstico de apanhar pássaros com bisgo, de tirar grilos da toca e fazer fisgas. A ansiedade confunde-se com o medo no momento em que transpõe aqueles portões. Medo de largar a mão da mãe? Não. Medo de estar num lugar estranho e desconhecido? Também não. Medo só de não conseguir cativar a amizade dos outros meninos. Que ninguém lhe fale, que ninguém venha partilhar as brincadeiras, os lanches, as histórias.
Era uma vez uma criança medrosa e corajosa como as outras.
Tem 10 anos. Sai outra vez da sua zona de conforto. Mais um exílio. Mais uma viagem, uma escola maior, com pessoas maiores, com livros maiores, com mais coisas para aprender. Refugia-se nas palavras, escritas e ditas. Lê histórias que queria que fossem suas e mergulha irreversivelmente no Mundo dos sonhos. Avança de peito aberto, como viria a ser sempre, em todos os exílios, em todas as viagens, físicas ou mentais.
Era uma vez uma criança sonhadora e abstraída como as outras.
Tem 15 anos. Deixa os livros nas prateleiras a ganhar pó e tenta viver. Persiste o medo de que os outros não queiram a sua companhia, porque não veste a roupa certa, porque não ouve a música certa, porque não pensa da maneira certa.
Era uma vez uma criança má e meiga como as outras.
Tem 20 anos. Continua a sonhar de olhos abertos, embora tenha o coração coberto de cicatrizes. Sabe exactamente o que quer e sonha com o momento em que o vai conseguir. Mas a certeza do futuro esconde o mesmo medo de sempre.
Era uma vez uma criança determinada e birrenta como as outras.
Tem 30 anos. O Mundo não é cor-de-rosa como pensava e o futuro não é o que esperava. Já não tem espaço para mais cicatrizes, mas elas acumulam-se. Continua no seu caminho rumo ao sonho, sem esmorecer.
Era uma vez uma criança normal na sua anormalidade, como as outras.
Tem 40 anos. Aprendeu que nem todas as pessoas têm boas intenções. Permanece na certeza de que o Mundo pode ser cor-de-rosa, se o quisermos dessa cor.
Era uma vez uma criança... como as outras.
Tem 50 anos como terá 100. Olha para trás e vê o pretérito imperfeito que o seu "era uma vez" encerra: alguns poucos laivos de cor-de-rosa. Os suficientes para continuar a encarar o futuro como sempre, de peito aberto. Com o mesmo medo de que os outros meninos não queiram vir brincar no intervalo. Na incerteza, estende a mão e hoje não tem medo de perguntar: "Queres vir brincar comigo?".
Era uma vez...
(Em resposta ao desafio lançado, aqui).
12 comentários:
Olá!Bonito conto, sobre a vida de cada um de nós. O medo persiste, como em cada um de nós. Precisamos tanto, que reparem em nós e que nos estendam a mão.
Beijo
Parece-me que, com os anos, vamos aprendendo a, de vez em quando, sermos nós a estender a mão. E sim, tenha-se 5 ou 100 anos, o medo persiste, sempre.
:)
Kiss
Como será a nossa vida daqui a 10 anos?
beijos
:)
Eu ainda estou ali entre os 20 e os 30 :) por isso, embora já tenha noção que os sonhos são para a caminha, não consigo deixar de os acalentar e de lutar por eles. Haverá tempo em que não o faça? Talvez.
Gostava de te poder dizer que o futuro depende de nós, mas a verdade é que não. Basta-nos fazermos o melhor que podermos e rezar (ou esperar, ou querer muito) para que o Mundo o faça também.
Kiss :)
Adorei o teu conto e digo-te também: Só TU o poderias ter escrito! ;)
Adorei :)
Verónica: Não é autobiográfico, embora nunca deixe de o ser... :)
Raquel: Obrigada. Kisses :)
Muito bom. I´m speechless.
Kem escreve assim só pode ser uma fixe, xuac.
:)
Kisses
So espero que aos 50 consigamos dizer que realizamos todos os sonhos dos 20... Mas que ainda temos projectos pelos quais vale a pena lutar :)
É o que espero também. Muito.
E principalmente poder olhar para trás e ver qualquer coisa de cor-de-rosa no nosso passado...
Beijos
Está tão lindo. Tão cheio de traços que, agora sei, pertencem á tua essência. caminhamos com medo, a vida toda. A diferença está no momento em que lhe damos a mão!
Adorei!!!!
:)
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