4 de março de 2009

Instantes dramáticos

Foi há um ano.
Semana horribilis na família Francisco. Tudo começou com a Sara que fez uma ruptura muscular que lhe custou mais de um mês de treinos, quando estava no pico da forma. Depois foi o pai do meu cunhado que deixou umas brasas acesas que começaram a arder e que por pouco não causaram uma explosão, até porque havia uma botija de gás ali bem perto. O meu cunhado, quando foi limpar os estragos, levou com uma cena em cima que lhe ia arrancando o nariz. A minha mãe caiu no quintal e andou à rasca das costas semanas.

Faz exactamente hoje um ano que eu, vinha das aulas na Marinha-Grande, atropelei o Micael. Estava um carro parado na estrada, em sentido contrário. Uma senhora, no meio da estrada, debruçada a falar com a condutora desse carro. A estrada era estreita. Lembro-me perfeitamente de pensar "raios da mulher, sente um carro a vir e nem se arreda". Reduzi e tive de me desviar da senhora pela berma. Até que... de trás do carro parado, aparece o Micael a correr... travei, mas o embate foi inevitável. Saí do carro a tempo de impedir que a mãe (a senhora que estava na estrada a falar com a senhora do carro) o agarrasse. Vem gente. Cham-se ambulância e INEM e tudo e mais alguma coisa. Eu, calma, consegui evitar que lhe mexessem. Ele fala. Ele está vivo. Vem a ambulância e ele parece mesmo estar bem. Queixa-se da pernita, mas os bombeiros põe-lhe o colarinho e têm todos os cuidados. Só neste momento é que consigo pensar que tenho de chamar alguém. Estava sem dinheiro no telemóvel. Mandei sms ao meu irmão para que ele ligasse à minha mãe para ela me ligar. A minha mãe liga e eu só consigo dizer que tive um acidente, que atropelei um miúdo e que o carro está bem. Era o carro do meu pai... e eu só conseguia dizer que o carro estava bem, que o carro estava mesmo bem... a minha mãe perguntava por mim e eu dizia que o carro estava bem. Consegui explicar onde estava e poucos minutos depois os meus pais estavam lá. Neste momento, estava descontrolada. Chorava. Diziam-me que ele estava bem... mas eu pensava no que podia ter sido, via-o ainda em frente ao carro e toda eu tremia. Vem a polícia e eu sopro no balão. Era meio-dia e eu disse, com o que restava de sentido de humor, "só se acusar iogurte com cereais!".... A polícia vê que não havia marcas de travagem. A mãe do Micael confirma que eu ia devagar e que ele atravessou a estrada a correr, vindo de trás do carro.
Ficou tudo bem. Fui para casa. Comi qualquer coisa. Tomei um banho quente e tomei um ansiolítico. Era o que me faltava, neste momento, ainda ter um ataque epiléptico! Arranjei-me e tive de pegar no carro outra vez. Era dia de entrevista. Fui à entrevista. Não sei bem como. Via miúdos em frente ao carro, sempre. Ao fim do dia os pais do Micael foram a minha casa. Vinham do Hospital. Vi-o. Tinha um hematoma na testa e a perna dorida. Não partiu nada. Estava tudo bem. Ele tão pequeno, 6 anos... tão frágil... e eu que tenho a mania de acelerar... quando penso na coincidência de coisas que conspiraram para que eu não o tivesse matado. Porque se eu não tenho reduzido por estar a mãe dele no meio da estrada a falar com a senhora, se o telemóvel tem tocado e eu tenho desviado o olhar, se... no meio do azar, sorte. Porque a mãe viu e nunca em nenhum momento me responsabilizou. Porque naquele dia À noite, quando lá foram, ainda perguntaram pelo carro e se era preciso pagarem alguma coisa. No meio do susto, ainda tiveram de se preocupar se o filho deles tinha causado algum estrago no carro.... está lá uma leve mossa que ninguém viu, à excepção do meu pai, mas ficou lá. Não a mandámos arranjar e os pais foram para casa com a única preocupação que deviam ter, o Micael.
A vida é feita de pequenos instantes. Instantes, centésimos de segundos que mudam a nossa vida para sempre. O Micael ficou bem, mas eu nunca mais fui a mesma. Não o esqueço e nunca deixei de o ver., ali, em frente ao carro, como um boneco. Eu a 30 e ele era um boneco. A 50, matava-o. E esta consciência assusta-me.
Dois dias depois, liga-me uma amiga que me diz que conseguiu ficar colocada. Meia hora depois ligam-me do lugar onde tinha ido à entrevista a dizerem-me que tinha sido seleccionada. Começava na 2ª-feira. Aqui onde estou.
Na sexta-feira, dormia ainda quando toca o telefone. Era o meu irmão, tinha tido um acidente. Rebentou o carro. Lá vou acordar os meus pais... o stress.
Não me lembro de uma semana assim. Espero que não mais se repita. Tantas coisas más... tantas coisas a todos nós e ao mesmo tempo. Parecia que o Universo nos perseguia...
Já tive semanas difíceis. Lembro a semana dos meus 20 anos, por exemplo. Mas nunca nada assim nos tinha acontecido. Com coisas tão graves e a tantos de nós.
A consciência de que podemos ter os olhos abertos, podemos ter mil e um cuidados, podemos fazer de tudo para que tudo corra bem, mas que não poderemos nunca ter o controlo. Os instantes são tão pequenos... tão significantemente pequenos que se tornam assustadores. Tivémos de aprender a viver com isto... com os nossos fantasmas. Com tudo o que aconteceu nessa semana. Não esqueço que, 3 horas depois do atropelamento, corria boato que o Micael tinha morrido, atropelado por um condutor em excesso de velocidade que tinha fugido. Nem forças tive para sentir raiva. "Matarem" assim uma criança, difamarem assim uma pessoa... mas para eles não é nada... falar não custa, não é?
Peço desculpas pela extensão do post... mas olhei para o relógio e vi-me na mesma hora de há um ano atrás... e as palavras sairam em catadupa. Inevitáveis. Irreversíveis como os acontecimentos. O suspiro de alívio... porque aquele instante podia ter acabado com muitas vidas, irreversivelmente. Não acabou connosco, mas mudou-nos para sempre.

24 comentários:

Brigitte disse...

Se há algo que aprendemos é com os sustos, mas não queremos que eles se repitam...espero que ao fim deste tempo tejas bem,porque no final de contas o Micael tá bem e ficou tb ele, preocupado ctg!!

A vida segue para a frente juntamente a aprendizagem do passado!

Uma beijoca

Noiva Judia disse...

Realmente, há alturas em que parece que tudo acontece... Felizmente, parece que tudo acabou em bem.

Ianita disse...

Um abre-olhos, sem dúvida... sempre que penso "que seca, 50 é tão devagar", lembro-me dele e que ia a 30 quando o atropelei... não é que agora cumpra os limites de velocidade, que não cumpro, mas nunca mais ninguém me ouviu dizer que 50 é pouco. Não é.

E sim, a vida segue. Faz um ano que a minha vida mudou para sempre. Pelo Micael, e por ter deixado definitivamente o ensino para trás...

Beijos!!
(se quiseres bater-me à porta no Domingo...)

Ianita disse...

Noiva: sim... felizmente! Os portugueses têm sempre sorte, não é? Temos esta perspectiva de que as coisas podiam ter sido piores... e podiam ter sido mesmo muito piores...

Mas cá estamos e temos de seguir...

Kisses

Lita disse...

Este texto faz-nos estremecer. Acho que todos nós temos desses instantes. Em que um olhar diferente, dois segundos, uma outra viragem teria mudado tudo. E nos faz parar e mudar. O teu texto fez-me isso. Beijos muitos

Ianita disse...

Lita: O importante é percebermos que os instantes não são apenas mágicos e que podem ser dramáticos e até mesmo trágicos...

Temos de estar atentos. E viver! Avançar. Devagar, mas avançar! :)

Beijos muitos! :)

Vera Angélico disse...

Pronto... lá estou eu no back-office a chorar. Isto mexeu comigo. A minha vida é repleta destes instantes que mudam tudo, desde há uns anos...

(Eu, a continuar a admirar-te os passos, e a sensibilidade. E a forma como vives...)

E não me sai mais nada...

Ianita disse...

Vera: nesse dia fui ao ATL do Telheiro... quando cheguei os meninos contaram-me que havia um menino da escola deles que tinha sido atropelado e que estava muito mal quase a morrer... deu-me um nó nos estômago e disse-lhes que tinha sido eu e que era mentira o que diziam do Micael...

Se não me engano, ele era da turma da tua filha, não era? Filho da Magda, lembras-te?

Emocionaste-me....

Beijos!

Rony disse...

Como ontem vi "O curiso caso de BB" é inevitável não pensar na maneira como o atropelamento da Daisy foi narrado. Uma sequência de instantes decisivos que levaram à tragédia. No teu caso, dentro do mal, tudo correu bem ;)

Um dos textos que escrevi falava também nos "instantes" da vida.

Kiss

Ianita disse...

Verónica: essa sequência do filme é fantástica. A forma como está descrita... tudo! E a vida é assim mesmo... para o mal, mas também para o bem... temos de saber aproveitar os instantes... os mágicos!

Beijo!

Vera Angélico disse...

Agora que falas nisso, lembro-me da Helena referir. Mas não sei quem era o menino. As crianças conseguem ser muito cruéis... e a visão deles é tão trágica como despreocupada. Não têm noção...

De qualquer forma, continua a ser arrepiante a forma com que o contaste. Não consigo imaginar acontecer-me. Ou acontecer à Helena. Felizmente, as pessoas envolvidas souberam ser razoáveis. Mas imagino perfeitamente o que sentiste, e continuas a sentir.

Ainda bem que ultrapassaste essa fase. E é isso que te admiro. A forma leve (não leviana), positiva e saudável com que aceitas as coisas e a vida. Com a dose de sensibilidade e sentido crítico que consegues manter. É um equilíbrio fantástico.

Não posso voltar a ler o que escreveste, que já foi choro a mais por hoje... lol!

Ianita disse...

Vera: não sou sempre assim... tenho os meus momentos muito sombrios e obscuros...

O que me parece é que lido melhor com o que me acontece a mim do que com o que acontece aos meus. Passei-me com a doença da minha avó, no ano passado. Ninguém me conhecia naquela pessoa que eu era. Estava fora de mim, fora de sentido, fora da vida, tão fora de tudo...

O que acho é que temos demasiado pouco tempo... o tempo que temos é pouco... é insignificante... não é nada face à eternidade em que não acredito. Perdemos tanto tempo em coisas que não valem a pena, em picardias parvas, em birras e tretas que acabamos por passar ao lado do que realmente interessa... passamos ao lado da vida...

Costumo dizer que não sei o que quero, mas que sei o que não quero e isso é uma forma de se saber o que se quer... e o que não quero é passar ao lado da vida. Não quero ser insignificante! Entendes? Quero ser mais, fazer mais, ir mais, gostar mais, ser mais gostada... ser mais! mais...

Quanto às crianças... taditas... foram uns queridos comigo. São ingénuos e não percebiam que alguém podia ter inventado aquelas mentiras... os adultos, esses sim, esses deviam ter vergonha... e não têm.

O que passei, não o desejo a ninguém, nem às pessoas de quem não gosto particularmente... é um peso que não desejo a ninguém.

Beijos e obrigada...

Li disse...

Conseguiste arrepiar-me.
É dos maiores medos que tenho...ir a conduzir e atropelar alguém, seja por culpa de quem for...deve ser terrível...aquele instante e depois o voltar a conduzir. Sei de pessoas que deixaram totalmente de conduzir por causa de um susto desses, alguns nem envolviam pessoas.
Espero sinceramente que estejas bem e, semanas dessas, que não aconteçam muitas vezes, de preferência nenhumas. Isso é que foi uma maré de azar, que no fundo poderia ter dado consequências bem piores...grrr...até é mau pensar.
Boatos e mentiras hão-de haver sempre...isso só gente que não tem vida própria, e então entretêm-se a falar na dos outros e a inventar...

bjitos

ah, e, por mim, podes sempre usar este meio para desabafar...pelo menos virtualmente poderemos dar-te algum apoio...:)

Ianita disse...

Lilipat: Os boatos perseguem-me há muito tempo... na minha terra sou a que fez 3 abortos, sendo que nunca na minha vida estive grávida e, se tivesses estado, ninguém tinha nada com isso. Mas há quem jure a pés juntos que é verdade... uma cambada de desocupados!

Eu conduzo. Mas noto-me mais assustadiça... o que pode ser perigoso. A lembrança desse dia continua a assombrar-me e há-de continuar sempre, independentemente da culpa que não tive... isso de pouco importa. Não tive culpa, mas fui responsável, porque se não estivesse ali nada daquilo teria acontecido...

Quanto aos desabafos... eu às tento ser mais comedida, mas não adianta fugir de mim. Aqui estou.

Beijos e obrigada!!

M. disse...

Foi um susto valente mas o importante foi no fundo ter corrido tudo bem!

Bjinhus*

Cat disse...

mas fizeste bem em contar...
ate eu colei...
e faz-nos pensar em muita coisa...
pq mm sem quere podemos matar alguem...
nao sei se conseguiria viver com isso...

M disse...

Ianita, semanas como essa que tu viveste, penso nunca ter vivido, graças a Deus! Mas faz-nos pensar muito na importância da fracção de segundo....

Devaneante disse...

É em alturas como essas que percebemos o quanto somos pequenos...

Agora a perspectiva positiva: no meio desses azares todos, felizmente sem consequências graves, ficaste em crédito e vais estar muito tempo sem acidentes ;-) (por vezes fico a pensar que até era bom acreditar em coisas como esta que acabei de escrever, mas, vá-se lá saber porquê, sou muito céptico e nada, mesmo nada, supersticioso... enfim, ninguém é perfeito).

Andy disse...

O teu post fez-me parar e ficar a ler-te...imagino o sofrimento que sentiste, respira fundo já passou.
Eu também tenho a mania de acelerar e ás vezes penso nestes pequenos instantes fatais que podem mudar a vida de uma pessoa. Bjs

Ianita disse...

Mary: foi um susto que não vai passar nunca... enquanto tiver este momento na cabeça, vou ter mais cuidado... Kiss

Cat: Nem tu nem quase ninguém... nem imagino o que será e não quero nunca vir a saber, nem o desejo a ninguém. Kiss

Ianita disse...

Sayuri: temos de aprender a relativizar, mas também a dar a devida importância ao tempo... por pequeno que seja... num centésimo de segundo cabe uma vida.

Beijos!

Ianita disse...

Devaneante: Somos pequenos e insignificantes mesmo! Mas há que relativizar e esperar que aquilo que dizes seja verdade e que what goes around comes around e como eu sou boazinha! :)

Andy: Temos de aprender a ter mais cuidado... Beijos

IandU disse...

Não imagino passar por isso. Ainda para mais uma criança.

Tenho que dizer que deverias dizer menos "Se", pois estás a dramatizar. Não aconteceu. Aconteceu isso. Pois "Se" não tivesses saído de casa, também poderia ter caído o tecto ;)

Beijinhos

Ianita disse...

Iandu: Tens razão... ainda assim, os "se" são inevitáveis e recorrentes sempre que penso no assunto. Acho mesmo que seria impossível não pensar assim, estando tanta coisa em jogo.

Ainda assim, não levo a vida nisto. Lembro-me Às vezes, mas só às vezes :)

Beijos!