16 de março de 2009

O outro lado do espelho


O outro lado do espelho. O lado lunar. O olhar de Medeia. Há uma série de acontecimentos que nos podem fazer passar para o outro lado. Cada um terá os seus. Para uns será mais fácil, outros terão mais auto-controle e conseguirão resistir a mais coisas. Uns serão mais frágeis às vicissitudes, outros serão mais resistentes. Mas, independentemente de pertencermos a um grupo ou a outro, independentemente de estarmos algures entre os dois grupos... independentemente de onde quer que estejamos... independentemente de credos, cores, crenças... independentemente de tudo, todos nós estamos sujeitos a cair.

A queda é um dos mitos mais antigos e mais recorrente em mitologias antigas e distantes. O homem está sempre sujeito ao pecado, à perdição, à queda. Não há pessoas virtuosas que não possam deixar de o ser. The dark side of the force... o Bem só existe porque há o Mal que se lhe opõe. E, entre um e outro há muitas grey areas. E todos podemos ir de um extremo ao outro num ápice. Todos podemos matar. Todos somos capazes das maiores barbaridades. Todos somos capazes de ferir de morte. Todos somos capazes de humilhar... todos somos capazes de tudo, se o Universo nos puser nesse sítio. Nesse sítio onde passamos para o outro lado do espelho. Nesse sítio onde os inversos de tocam. Nesse lugar em que o lado solar troca de lugar com o lado lunar. Nesse lugar em que a loucura toma posse. Todos somos Medeia em potência. Vivemos as nossas vidas em calmia, sossegados, com as nossas certezas, com o nosso sistema de valores... até ao dia em que o Mundo se vira de pernas para o ar e somos outra pessoa que é nós. Para Medeia foi a traição do homem que amava, para nós o que será? Não sei. Penso nisso às vezes. Penso no que me faria perder o controle e fazer com que o meu eu do outro lado do espelho tomasse conta da minha vida. Não sei. Todos poderemos imaginar o que seria a nossa reacção em determinada situação, mas não saberemos até estarmos lá.
Diz-se que só revelamos o nosso verdadeiro carácter em tempos de crise. Eu concordo. Acho mesmo que só em crise é que somos postos à prova e é nesses momentos que mostramos o nosso verdadeiro eu. É muito fácil sermos boas pessoas quando tudo nos corre de feição. Não é à toa que a maioria das parábolas no Antigo Testamento incluem provas. O problema é que nós não somos santos e falhamos. Cedemos ao nosso dark side demasiadas vezes. Não sabemos dar a outra face e, vai daí, nem sei se deveríamos. A verdade é que não gosto de mim em momentos de crise e não gosto do meu dark side. Enquanto a crise dura consigo ser forte. Domino tudo. Tenho auto controlo. Tenho sentido de humor e consigo persistir. O pior vem depois. Depois, quando tudo passa. Depois, quando atravesso para o lado de lá do espelho. E penso se haverá o dia em que eu não volte.

A verdade é que não consigo já seguir sem esta consciência, sem esta certeza deste olhar que me segue. Sem o outro lado do espelho. Não sei se o ter esta consciência me ajuda a evitar que o dark side me invada, se torna tudo mais inevitável.

Por enquanto são coisas pequenas. Pequenos desabafos. Pequenas perdas de controle. Pequenos acessos de mau feitio. Pequenos descontrolos hormonais. Sessões de choro compulsivo. Irritabilidade. Discussões por coisa nenhuma. Pequenas coisas. Pequenas coisas que me fazem pensar no que seria preciso para dar o salto e não mais voltar. O que me faria cometer uma loucura. À partida não seria um amor por qualquer homem. Não sou pessoa disso, pelo menos, acho que não. Talvez um amor maternal. Não sei. Mas penso nisso. Já sei que vai haver quem me vá recriminar por pensar em coisas que não são positivas e por pensar em coisas que não acontecem e por "pensar demais". Mas quando vejo o meu lado negro a apoderar-se de mim. Quando vejo como consigo magoar pessoas que não têm culpa. Quando vejo estas coisas, quando penso nos mitos, quando vejo notícias estranhas na tv, reflicto. Tento olhar para mim e perceber se eu seria capaz da mesma coisa. E percebo que todos somos capazes de loucura. Todos somos capazes de sair de nós e sermos o outro nós. Todos caminhamos sob o olhar de Medeia.

24 comentários:

Vera Angélico disse...

O dinheiro que eu tenho poupado em psicólogos desde que te descobri nos blogs... mas não vale cobrar, ok???

Mais uma vez, e como sempre, é perturbador, o que dizes.

Eu também não gosto do meu "dark side". Melhor. Tenho aprendido ao longo do tempo a moldá-lo. Caso contrário, estavamos mal... Já fui posta à prova tantas vezes...

Acho sempre que estou no limite do sofrimento, mas tenho sobrevivido. Claro que preferia estar sempre imensamente feliz. Ou não. É em cenários de crise que aprendemos a viver. Ou, pelo menos, a dar valor ao quanto fomos felizes em determinadas alturas. Ou então sou só eu que sou assim. Whatever!

Beijos.

Ianita disse...

Vera: o que é estúpido é que tens toda a razão. Por que será que precisamos de estar mal para sabermos o que é estarmos bem? Por que não podemos simplesmente estar bem? Por que é que é o sofrimento que constrói o carácter?

Mas o Mundo está feito assim, em dicotomias. E por mais grey areas que haja, só sabemos o que é viver quando vamos de um extremo ao outro.

Talvez a felicidade seja fácil demais. Mas eu acho que o meu carácter já está formado, por isso... gostava de mais facilidades.

Não te fies no que eu digo porque a verdade é que quanto mais tempo passa mais parva e anormal eu me torno.

Kisses

Paulo Lontro disse...

“Porque é que é o sofrimento que constrói o carácter?"

Quem disse isso?

"...só sabemos o que é viver quando vamos de um extremo ao outro."

Tu mesmo escreves que viver é estar dos dois lados e, muito bem, não classificas os lados de bom ou mau, de bonito ou feio, de certo ou errado , é que mesmo isso pode ser verdade hoje e mentira amanhã.

Certo?

Ianita disse...

Paulo: certo. O que hoje é verdade pode ser mentira amanhã, sem dúvida.

Mas mesmo sem ter classificado os lados, tu próprio lhes dás nomes... e a verdade é que eu gostava de não ter de saber o que é estar do outro lado. Será, talvez, mau demais...

Não sei.

Há alguma coisa que te faria atravessar a barreira da loucura?

Paulo Lontro disse...

Não, nunca dou nomes e fiquei satisfeito por tu , e ao contrário de tantos, também não lhes teres dado apesar de eles, os nomes, existirem.
Já falamos disto aqui Iani, mesmo que os nomes sejam lá colocados, no lado x ou y a avaliação só será verificada com o tempo. Aquilo que hoje me parece ter um nome pode mais tarde ter o outro oposto.
Os caminhos são os escolhidos a classificação vem mais tarde por isso a barreira da loucura é uma especulação, sempre uma especulação vinda dos outros.

Ianita disse...

Paulo: sim. Isso é verdade. Por mais que imaginemos e criemos cenários na nossa cabeça, nunca saberemos a nossa reacção...

Mas nem falo da barreira que os outros estabelecem... daquilo que os outros consideram loucura... mas de nós-mesmos e das nossas próprias barreiras... mas, lá está, nós mudamos as nossas barreiras de sítio... e o que hoje é impossível, amanhã é possível. E o que não faríamos hoje, vêmo-nos a fazê-lo amanhã.

Seremos sempre loucos?

Paulo Lontro disse...

A loucura é poder escolher e não escolher, é poder viver e não viver.
A loucura é não fazer escolhas à espera de certezas.
A loucura é poder decidir e não o fazer porque se perde tempo a fazer frases com as palavras SE e MAS.
A loucura é parar a vida à espera da fada madrinha…

Ianita disse...

Paulo: quando escrevi este post estava a pensar nas situações-limite. Naquele momento em que tu, que em sã consciência nunca matarias ninguém, e matas. Pensava nos acontecimentos que nos poderiam levar a esse cenário limite.

Quanto ao que dizes agora, tens razão. Ou pelo menos revejo-me no mesmo juízo que tu. É loucura não escolher viver.

Kiss

izzie disse...

"Anita" (nem imaginas a "honra que tens ao ser tratada assim por mim, mas eu dps explico...): Foi bom, mais que bom... ler-te hoje, ler-te agora.
Não só tenho ainda mais certezas de mereceres a minha amizade (que já ta tenho) e a energia boa que consigo quando penso em ti... como gosto, gosto de te ler, sentir assim. - sei, agora pareci um bocadinho má...

Mas tudo porque, incrivelmente, me revejo e sinto em ti... na tuas palavras... partilho tantas que não repito sob pena de parecer um cliché... mas são muitas, são.
E fico feliz, pela tua coragem, pelo teu bright side que é mto maior e se revela aqui, por partilhar pensamentos contigo.

Neste momento sou eu que desejo dia 28 e peço tanto pa conseguir ir... (LOOOOL) não para receber um abraço... mas para o conseguir dar.

Beijo

Lita disse...

Querida amiga, li uma vez num livro fabuloso (o Convite, de Oriah Moutain Dreamer) uma frase que me marcou: "não aceito uma espiritualidade que não abarque a minha humanidade." Acho que isso diz tudo. A aceitação de quem somos, amar a luz e a sombra, para mim, é a forma mais obvia de tornar tudo luz. Todos nós somos capazes de tudo. E é essa consciência que nos pode dar a armas para escolher, dentro das nossas circunstâncias, aquilo que queremos e podemos fazer no momento.
A sombra não é um erro, é uma parte de nós.
Beijos muitos.

Maria Anjos Varanda disse...

Gosto bastante da maneira como escreves....

É...Qualquer um de nós pode cair...um dia....

Beijos

Ianita disse...

Izzie: sabes, sofro de verborreia aguda... e, embora o tempo me tenha já curado um pouco, a verdade é que tenho ainda a mania de ir dizendo o que sinto. Umas vezes melhor que outras...

Há quem diga que conseguimos o que queremos... melhor, que conseguimos o que precisamos. E acho que estamos a precisar de um dia 28 em altas :)

Beijo grande

Ianita disse...

Lita: Temos de ter a consciência de que não somos melhores que ninguém... que nós também somos capazes de tudo, dadas as circunstâncias. E talvez saber disso nos ajude a superar a sombra no dia em que ela vier, com sabres de luz :)

Beijo grande e obrigada

Ianita disse...

Maria: um dia... esperemos que distante. E esperemos que a prova não seja demasiado difícil...

Kisses :)

Eumesma disse...

Só "vendo" o nosso dark side é que temos consciência que de quem relamente somos: o ser humano não se revela no bom, revela-se sim nos periodos maus.
Ele existe , está sempre lá..

Mas há é que saber o reconhecer, aprender com ele e tomarmos conciência do que nele prejudica os outros e magoa o nosso semelhante e mudar de atitudes...

Portanto "ele" até poderá não ser mau de todo..:-)

Bjs

Ianita disse...

Eumesma: pois... se tivermos consciência que existe e que pode tomar posse, mais facilmente o contornamos... também acho isso.

Kisses

IandU disse...

Estava mesmo para te perguntar no outro dia o que queria dizer esse "quadro" e, sem mais nem menos, disseste ;)

Beijinhos

Ianita disse...

Iandu: sem mais nem menos... é o olhar que nos segue. Não sentes? :)

Ianita disse...

Iandu: faltou dizer que é um quadro do Picasso. Não que goste dele particularmente, mas este em particular diz-me muito. Porque a imagem no espelho está transfigurada e revi-me nele imediatamente. É assim que me vejo, nas minhas diferentes (más)caras. O outro lado do espelho... :)

Ianita disse...

Iandu... agora fiquei atrapalhada... a arte é algo de muito pessoal. Aquilo que disse é o que eu vejo e é o motivo pelo qual eu pus essa imagem no blog... não quer dizer que seja isso que lá está. Não queria estar a impor a minha visão da coisa...

O que é que tu vês?

IandU disse...

Acabei de ler, algures por aí, que devemos de olhar para o quadro pouco tempo, não este em particular, pois quanto mais olharmos mais ideias vamos ter dele e acabamos por sair da realidade dele.

Neste, logo da primeira vez que vi, chamar-lhe-ia "Frente e verso". Se quiser exagerar, para variar um bocado, vejo uma mulher a olhar para um homem. Mas lá está não sei a história total do quadro. ;)

Ianita disse...

Iandu: eu não sei nada de nada... :) mas quando olhei pensei no outro lado do espelho e precisamente nessa ideia de frente e verso.

Não sei se quanto mais vemos menos percebemos da essência, mas acho que são um pouco como a literatura... ganha-se muito na partilha de visões e muitas vezes não vemos o que temos na frente dos olhos, por mais que forcemos a vista.

Independentemente do que signifique pros entendidos, sei o que significa para mim e gosto. Acho que é o suficiente, não é?

IandU disse...

Totalmente. Como alguém acabou de dizer, :P gostos não se discutem. E se tem significado para nós que assim seja. ;)

Ianita disse...

Iandu: Precisamente! :)