Sob o olhar de Medeia é um romance escrito como poesia que nos transporta até a um idílico bucolismo ao estilo de Hesíodo ou de Virgílio.
Fiama Hasse Pais Brandão, com este seu romance de estreia, presta justa homenagem a uma antiguidade clássica que esteve sempre presente na sua obra poética. Desde a primeira linha até à última, não conseguimos deixar de seguir este caminho que nos leva da luz ao fogo da renovação interior.
Medeia é filha de Eetes, da Cólquida, neta do sol e sobrinha da feiticeira Circe. A imagem que perpassa pela tradição é a de uma feiticeira que, por encantos mágicos, ajuda os Argonautas e conquistar o velo de ouro. Jasão promete-lhe casamento em troca da sua ajuda. Todas as atitudes posteriores de Medeia, se bem que não sejam desculpadas, são pelo menos explicadas pelo perjúrio de Jasão.
Os rigores amorosos conduzem as personagens ao limite do racional. O Amor é igualmente o rei que comanda e subordina os mais nobres valores do homem. E Medeia é escrava dele, ela que “mede a grandeza do ódio pela grandeza do amor.” Medeia que se entregou a Jasão, que por ele matou o irmão e traiu o pai, para mais tarde ser por ele traída. Todas as versões do mito se têm centrado em transmitir toda a face irracional, obscura, inconsciente da personagem, visualizar a deformação que o ultraje de Jasão e o exacerbado desejo de vingança infligiram na mens de Medeia, numa palavra, denotar a sua profunda e anti-estóica subordinação às paixões.
Mas, ao contrário do que à primeira vista poderíamos pensar, não encontramos esta Medeia no romance de Fiama. Em Sob o olhar de Medeia, encontramos a Medeia da Cólquida, entregue ao quotidiano campestre e feliz. Mas a outra, aquela Medeia louca de paixão, essa está à espreita.
O romance está dividido em nove partes: luz, terra, ar, água, exílio, vida, saudade, morte e fogo. No primeiro capítulo, a luz surge como elemento ligado à felicidade. Aqui nos é relatada a infância feliz de Marta, vivida no quarto materno feito de luz e amor. Mas a luz também é capaz de distorcer a realidade, uma vez que cria mais sombras. E é do outro lado da luz, nas trevas, que Marta vai viver o resto do seu tempo naquela casa desde o dia em que a exilam do quarto materno. É este o seu primeiro exílio e Marta vive-o intensamente e com profundo desgosto. Porque sente a dor intensíssima, a de ser amada e depois expulsa e desterrada. Este tema do exílio vai ser uma constante ao longo de todo o romance, até porque este “desterro” marca definitivamente a vida de Marta.
Acompanhamos Marta no seu dia-a-dia com o caseiro, os seus trabalhos e os seus dias. Uma vida tranquila, cheia de paz, num bucolismo rodeado do Bem, que existe em oposição ao Mal, Lázaro “portador de fuga (…) e de morte”. Um Mal necessário para que exista o Bem.
À medida que Marta cresce, cresce o seu amor à terra a que se misturam os mitos contados pelo seu Ulisses. O mestre que lhe narra as aventuras de Ulisses e depois narrará as de Jasão e dos Argonautas confunde-se no imaginário infantil de Marta com a própria personagem. No fundo do espelho, onde Marta revive as histórias contadas, Ulisses confunde-se com o professor, o mito confunde-se com a vida, como será ao longo de toda a sua vida. “Foi o espraiar da água, ali nas leiras de batata e de couve, e as leituras quase diárias dos clássicos, de Homero a Apolónio ou Hesíodo, que a puseram a meditar no Cosmos, em termos de vácuo e de caos, ela, que antes tanto se empenhava na matéria viva, no mundo e na sua repartição abundante ou suficiente entre todos os homens.”
“Amar a terra é aceitar o duro poder e a benevolência de toda a Natureza, os relâmpagos destruidores, ventos e águas agrestes e, da mesma maneira, vento e água pacificados e benfazejos para o homem, noutro momento.” O dia-a-dia de Marta é feito de deslumbramento com o ciclo da vida e com o Bem, que não depende de nenhum deus católico, mas do que de melhor está dentro de cada um e na Natureza. Deslumbra-se com as tarefas rotineiras da quinta como com o amigo Jesus, que dá a sua vida para salvar um pássaro. Com estes amigos, cujos nomes falam, Marta aprende a reconhecer o mal (os lenhadores), o perdão (que dará mais tarde a Lázaro) e o sacrifício (Jesus). E Marta sorve todos estes ensinamentos e constrói a sua própria religião, feita de amor aos outros e à Natureza.
“A forma de Marta se exprimir sobre as coisas ir-se-á modificando com a idade, dizendo o que viveu, na infância e juventude, com um modo de dizer posterior, feito da memória dos factos e da memória de outros pensamentos, imiscuídos, sem destrinça, nos factos. Como poderia distinguir um mito e a sua própria vida, quando, por vezes, episódios e símbolos comuns os confundiam?” Porque os pomares da quinta se confundem com os “pomares sem tempo” da Cólquida, porque o seu mestre é o Ulisses de Penélope, porque a saída do quarto materno foi um exílio, porque as ovelhas da quinta, sob o olhar de Apolo, pareciam de ouro, como as da mítica Medeia, porque vida e sonho se confundem e são um só.
Marta vive um tempo mítico, vive no isolamento da quinta que encerra em si todo o conhecimento do mundo. Como os antigos, Marta “imaginava o passado e o futuro, ambos fundidos na mesma imagem da cor e da claridade, ambos perdidos e recuperados, na mesma memória, constantemente recomeçada com a passagem dos anos, conforme concluiu depois.”
A felicidade encontra-a assim. Na certeza das pequenas coisas que a maioria das pessoas tem como garantidas. Do seu primeiro exílio, o involuntário, segue-se um outro, voluntário e pensado. A sua entrega aos trabalhos na quinta e às histórias da avó ou do professor não são mais que mais um exílio, uma fuga dos sentimentos que lhe atormentam a alma. Mas é neste exílio que ela encontra a paz do amor à Natureza, encontra companheiros de vida, os bucólicos e os cultos, mediados e aproximados por Marta, uma vez que, para ela, são mundos complementares, o da Natureza e o dos mitos. “Faltava-lhe pensar a relação fundamental do trabalho em comum, do afecto partilhado, das surpresas, entre o nascer e o florir, o madurar, o colher, o secar, o morrer, o renascer, o reflorir, o sempre.” E é sob o olhar de Medeia que Marta vive na sua Cólquida. “Cólquida a que Marta se sente, cada vez mais, pertencer, partilhando na capacidade mágica de uma Medeia marcada pela leitura do mito na modernidade (…): Medeia, a sacerdotisa de um tempo original, mítico e sagrado, uníssono com a natureza. Tempo em que a palavra é mágica e criadora do real, em que a palavra tem o poder de convocar o que nomeia.”
Este é, de facto, um romance que reflecte uma ideologia, um modo de pensar, que sendo actual é também clássica. O campo é um exílio como o é para os exilados de Roma (que têm de sair da urbe e viver no campo) e é lá que Marta reconhece a verdade e a simplicidade da vida, sob o olhar de Medeia, que espreita, como o nosso outro lado, louco, está sempre connosco.
Fiama Hasse Pais Brandão, com este seu romance de estreia, presta justa homenagem a uma antiguidade clássica que esteve sempre presente na sua obra poética. Desde a primeira linha até à última, não conseguimos deixar de seguir este caminho que nos leva da luz ao fogo da renovação interior.
Medeia é filha de Eetes, da Cólquida, neta do sol e sobrinha da feiticeira Circe. A imagem que perpassa pela tradição é a de uma feiticeira que, por encantos mágicos, ajuda os Argonautas e conquistar o velo de ouro. Jasão promete-lhe casamento em troca da sua ajuda. Todas as atitudes posteriores de Medeia, se bem que não sejam desculpadas, são pelo menos explicadas pelo perjúrio de Jasão.
Os rigores amorosos conduzem as personagens ao limite do racional. O Amor é igualmente o rei que comanda e subordina os mais nobres valores do homem. E Medeia é escrava dele, ela que “mede a grandeza do ódio pela grandeza do amor.” Medeia que se entregou a Jasão, que por ele matou o irmão e traiu o pai, para mais tarde ser por ele traída. Todas as versões do mito se têm centrado em transmitir toda a face irracional, obscura, inconsciente da personagem, visualizar a deformação que o ultraje de Jasão e o exacerbado desejo de vingança infligiram na mens de Medeia, numa palavra, denotar a sua profunda e anti-estóica subordinação às paixões.
Mas, ao contrário do que à primeira vista poderíamos pensar, não encontramos esta Medeia no romance de Fiama. Em Sob o olhar de Medeia, encontramos a Medeia da Cólquida, entregue ao quotidiano campestre e feliz. Mas a outra, aquela Medeia louca de paixão, essa está à espreita.
O romance está dividido em nove partes: luz, terra, ar, água, exílio, vida, saudade, morte e fogo. No primeiro capítulo, a luz surge como elemento ligado à felicidade. Aqui nos é relatada a infância feliz de Marta, vivida no quarto materno feito de luz e amor. Mas a luz também é capaz de distorcer a realidade, uma vez que cria mais sombras. E é do outro lado da luz, nas trevas, que Marta vai viver o resto do seu tempo naquela casa desde o dia em que a exilam do quarto materno. É este o seu primeiro exílio e Marta vive-o intensamente e com profundo desgosto. Porque sente a dor intensíssima, a de ser amada e depois expulsa e desterrada. Este tema do exílio vai ser uma constante ao longo de todo o romance, até porque este “desterro” marca definitivamente a vida de Marta.
Acompanhamos Marta no seu dia-a-dia com o caseiro, os seus trabalhos e os seus dias. Uma vida tranquila, cheia de paz, num bucolismo rodeado do Bem, que existe em oposição ao Mal, Lázaro “portador de fuga (…) e de morte”. Um Mal necessário para que exista o Bem.
À medida que Marta cresce, cresce o seu amor à terra a que se misturam os mitos contados pelo seu Ulisses. O mestre que lhe narra as aventuras de Ulisses e depois narrará as de Jasão e dos Argonautas confunde-se no imaginário infantil de Marta com a própria personagem. No fundo do espelho, onde Marta revive as histórias contadas, Ulisses confunde-se com o professor, o mito confunde-se com a vida, como será ao longo de toda a sua vida. “Foi o espraiar da água, ali nas leiras de batata e de couve, e as leituras quase diárias dos clássicos, de Homero a Apolónio ou Hesíodo, que a puseram a meditar no Cosmos, em termos de vácuo e de caos, ela, que antes tanto se empenhava na matéria viva, no mundo e na sua repartição abundante ou suficiente entre todos os homens.”
“Amar a terra é aceitar o duro poder e a benevolência de toda a Natureza, os relâmpagos destruidores, ventos e águas agrestes e, da mesma maneira, vento e água pacificados e benfazejos para o homem, noutro momento.” O dia-a-dia de Marta é feito de deslumbramento com o ciclo da vida e com o Bem, que não depende de nenhum deus católico, mas do que de melhor está dentro de cada um e na Natureza. Deslumbra-se com as tarefas rotineiras da quinta como com o amigo Jesus, que dá a sua vida para salvar um pássaro. Com estes amigos, cujos nomes falam, Marta aprende a reconhecer o mal (os lenhadores), o perdão (que dará mais tarde a Lázaro) e o sacrifício (Jesus). E Marta sorve todos estes ensinamentos e constrói a sua própria religião, feita de amor aos outros e à Natureza.
“A forma de Marta se exprimir sobre as coisas ir-se-á modificando com a idade, dizendo o que viveu, na infância e juventude, com um modo de dizer posterior, feito da memória dos factos e da memória de outros pensamentos, imiscuídos, sem destrinça, nos factos. Como poderia distinguir um mito e a sua própria vida, quando, por vezes, episódios e símbolos comuns os confundiam?” Porque os pomares da quinta se confundem com os “pomares sem tempo” da Cólquida, porque o seu mestre é o Ulisses de Penélope, porque a saída do quarto materno foi um exílio, porque as ovelhas da quinta, sob o olhar de Apolo, pareciam de ouro, como as da mítica Medeia, porque vida e sonho se confundem e são um só.
Marta vive um tempo mítico, vive no isolamento da quinta que encerra em si todo o conhecimento do mundo. Como os antigos, Marta “imaginava o passado e o futuro, ambos fundidos na mesma imagem da cor e da claridade, ambos perdidos e recuperados, na mesma memória, constantemente recomeçada com a passagem dos anos, conforme concluiu depois.”
A felicidade encontra-a assim. Na certeza das pequenas coisas que a maioria das pessoas tem como garantidas. Do seu primeiro exílio, o involuntário, segue-se um outro, voluntário e pensado. A sua entrega aos trabalhos na quinta e às histórias da avó ou do professor não são mais que mais um exílio, uma fuga dos sentimentos que lhe atormentam a alma. Mas é neste exílio que ela encontra a paz do amor à Natureza, encontra companheiros de vida, os bucólicos e os cultos, mediados e aproximados por Marta, uma vez que, para ela, são mundos complementares, o da Natureza e o dos mitos. “Faltava-lhe pensar a relação fundamental do trabalho em comum, do afecto partilhado, das surpresas, entre o nascer e o florir, o madurar, o colher, o secar, o morrer, o renascer, o reflorir, o sempre.” E é sob o olhar de Medeia que Marta vive na sua Cólquida. “Cólquida a que Marta se sente, cada vez mais, pertencer, partilhando na capacidade mágica de uma Medeia marcada pela leitura do mito na modernidade (…): Medeia, a sacerdotisa de um tempo original, mítico e sagrado, uníssono com a natureza. Tempo em que a palavra é mágica e criadora do real, em que a palavra tem o poder de convocar o que nomeia.”
Este é, de facto, um romance que reflecte uma ideologia, um modo de pensar, que sendo actual é também clássica. O campo é um exílio como o é para os exilados de Roma (que têm de sair da urbe e viver no campo) e é lá que Marta reconhece a verdade e a simplicidade da vida, sob o olhar de Medeia, que espreita, como o nosso outro lado, louco, está sempre connosco.
4 comentários:
Tenho de ler esse livro. Medeia sempre foi das figuras que mais me fascina no universo clássico.
Parece ser fascinante... :)
Deve ser lindo!
wow...adorei...sempre me interessei pela mitologia de Medeia. Tenho que explorar melhor!!!
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