19 de junho de 2010

De Saramago

Não conheço. Nunca conheci. Nem sei se queria ter conhecido. Há coisas que me cativam. Outras tantas que me afastam.

Independentemente de nacionalismos ou discordâncias de opinião, há algo que se eleva a tudo isso: os livros. A literatura está acima de tudo o resto. Não sei se o Saramgo era boa pessoa, assim como não sei se o Virgílio o era, ou o Aristófanes, ou o Eurípides. Não interessa. Os textos valem por si-mesmos e são maiores que a pessoa que os escreveu... quanto mais não seja porque lhes sobrevivem. Porque os eternizam.

O "Memorial do Convento" é o meu livro favorito escrito em língua portuguesa. E Saramago era um génio literário. Porque, além de outras coisas, reinventa um estilo que estava canonizado, cristalizado, reinventa o romance histórico, o meu género de eleição. O "Memorial do Convento" não é apenas um romance de teor histórico, não é só um romance, é uma obra-prima que tive o privilégio de ler e reler e de ensinar, uma vez que faz parte do programa de 12ºano de Português. Nunca o dei em aulas. Sempre em explicações. Se o desse em aulas, sempre o soube desde que li o livro pela primeira vez, começaria por este excerto:


"... e foi o caso que certo clérigo, costumeiro em andar por casas de mulheres de bem fazer e ainda melhor deixar que lhes façam, satisfazendo os apetites do estômago e desenfadando os da carne, e sempre pontualmente dizendo sua missa, quando lá lhe parecia alçava levando os bens que lhe estavam à mão, e tantas fez que um dia a ofendida, a quem muito mais se tirara do que o tudo que dera, tirou ela ordem de prisão, e indo os oficiais e agarradores a cumpri-la por ordem do corregedor do bairro, a uma casa onde o clérigo já estava vivendo com outras inocentes mulheres, entraram, mas tão desatentos à obrigação que não deram com ele, que estava metido numa cama, e foram a outra onde lhes pareceu que estaria, assim dando vaza para que o padre saltasse, nu em pelo, e, disparando escada abaixo, a murro e pontapé limpou o caminho, ficaram gemendo os quadrilheiros pretos, mas conforme puderam, cainçando, correram atrás do padre pugilista e garanhão, que já lá ia pela Rua dos Espingardeiros, e eram isto oito horas da manhã, começava bem o dia, gargalhadas pelas portas e janelas, ver o clérigo a correr como lebre, com os pretos atrás, e ele de verga tesa, e bem apeirado, benza-o Deus, que um homem tão dotado o lugar dele não é a servir nos altares mas na cama de serviço às mulheres, e com este espectáculo padeceram grande abalo as senhoras moradoras, coitadas, assim desprevenidas, como desprevenidas e isentas estariam as que se achavam rezando na igreja da Conceição Velha e viram entrar o padre resfolgando, em figura de inocente Adão, mas tão carregado de culpas, sacudindo badalo e guisos, à uma apareceu, às duas se escondeu, às três nunca mais foi visto, que nesse passe de mágica deu a diligência dos padres que o recolheram e deram fuga pelos telhados, já vestido, nem isto é sucesso que cause estranheza, se em cestos se içam os franciscanos de Xabregas mulheres para dentro das celas e com elas se gozam, por seu próprio pé subia este padre a casa das mulheres que lhe apeteciam o sacramento, e para não fugirmos ao costumado fica tudo entre o pecado e a penitência, que não é só na procissão da Quaresma que saem à rua as disciplinas, excitantes, quantos maus pensamentos hão-de ter de confessar as senhoras moradoras da baixa de Lisboa e as devotas da Conceição Velha por tão rico padre terem gozado com a vista, e os quadrilheiros atrás dele, agarra, agarra, quem pudera agarrá-lo para um coisa que eu cá sei, dez padre-nossos, dez salve-rainhas, e dez reis de esmola ao nosso padre Santo António, e estar deitada uma hora inteira, com os braços em cruz, de barriga para baixo como à prosternação convém, de barriga para cima que é posição de mais celestial gozo, mas sempre levantando os pensamentos, não as saias, que isso ficará para o próximo pecado."


in, Memorial do Convento, pp. 79/80

6 comentários:

M disse...

Foi com o 'Memorial do Conento' que tive o meu primeiro encontro com Saramago. O encontro não durou mais que meia duzia de paginas e ficámos por ai...

Ianita disse...

Sayuri: aconteceu-me o mesmo com "O ano da morte de Ricardo Reis". Já tentei duas vezes e não consigo passar das primeiras páginas... em contrapartida, já li e reli o Memorial. E "A caverna" li em dois dias, quase nem dormia para continuar a ler.

Há coisas assim :)

Rui disse...

Curiosa esta maneira de escrever de Saramago! Neste belo e extenso texto, pareceu-me haver apenas um ponto final. Ele não se lembrava deles ao escrever, mas ele, o ponto final, não o esqueceu.

Lembrei-me imediatamente dum título que li a noticiar a sua morte, suponho que no "jornal i" (mais ou menos isto) :
"Quando o ponto final se lembrou de José Saramago"
.

Ianita disse...

Rui: não é impressão :) só há mesmo um ponto final.

É preciso conhecer as regras gramaticais muito bem, para as conseguir transgredir de uma forma que faça sentido. É o caso de Saramago, que criou um estilo único, próprio, vivo, muito próximo à linguagem oral. Os livros dele foram feitos para serem lidos em voz alta.

E esse título está muito bem conseguido :)

im disse...

Nunca tinha lido Saramago. Mas por valores imperiosos li o "Memorial do Convento" à bem pouco tempo...e adorei!

Voltarei a Saramago em breve.

Morreu o homem, mas a sua obra será eterna enquanto houver quem a leia.

Beijinhos

Ianita disse...

Dylan: assino por baixo :)

im: ele é eterno... como a sua obra. Recomendo-te "A Caverna". Amei! :)

Beijinhos!